A Lei 10.639/03: significados e desafios da lunta anti-racista no Brasil

Encerramento do curso de Arte africana, NEAB/UNIPLAC, 10 nov. 2007.

Por: Paulino de Jesus Francisco Cardoso[1]


Nada simboliza mais ascensão do Movimento Negro do que a transformação de uma antiga reivindicação em lei – a obrigatoriedade do ensino da História e da Cultura Africana e Afro-Brasileira nos escolas do país, um dos primeiros atos de Luiz Inácio Lula da Silva, como presidente da República Federativa do Brasil.

Ao longo das ultimas três décadas, educadores e organizações anti-racistas lutaram em diferentes cidades e estados para aprovar e implementar legislações análogas e produzir experiências de uma pedagogia anti-racista. Pedagogia, como diria Amauri Mendes Pereira e Jeruse Romão, que refletisse um pensamento negro sobre educação. Este, compõem-se de um corpo diverso, centenário, de discussões que expressava (e expressa) as expectativas de intelectuais e ativistas afrodescendentes no pós- Aboliçao. Tal e qual a “Lei Áurea”, trata-se de um texto curto, somente dois artigos, com um grande projeto, a primeira pretendia libertar nossos corpos, a segunda nossas mentes.

As mudanças trazidas na Lei 9.394/96, Diretrizes e Bases da Educação Nacional, são mais facilmente compreendidas quando associadas ao parecer do Conselho Nacional de Educação N°03/04[3], que propôs Diretrizes para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de Cultura e História Afro-Brasileira e Africana. Esta norma legal, além de eliminar silêncios, melhorou significativamente o texto da Lei 10.639/03, ao criar orientações para sua implementação nas redes de ensino oficiais do país.

De acordo coma as Diretrizes, trata-se de uma ação afirmativa – “ Conjunto de ações políticas dirigidas a correção de desigualdades raciais e sociais , orientada para oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória[4]. Tal ação afirmativa está, por sua vez, assentada em uma política de reparação, de reconhecimento e de valorização da história, cultura e identidade negra.

Por reparações entende-se “medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob regime escravista, bem como, em virtude de políticas explicitas ou tácticas de branqueamento da população, de manutenção de privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e influir na formulação de políticas no pós-abolição[5]. Ou seja, constitui um acerto de contas com o passado escravista e com o presente de discriminação racial.

Já a política de reconhecimento compreende “a valorização da diversidade daquilo que distingui os negros dos outros grupos que compõem a população brasileira;”[6] e que requer a valorização, divulgação “ dos processos históricos de resistência negra desencadeados pelos africanos escravizados no Brasil e por seus descendentes na contemporaneidade, desde as formas individuais até coletivas”; a adoção de políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade a fim de superar a desigualdade étnico-racial presente na educação escolar brasileira nos diferentes níveis de ensino”.[7]

Como as inúmeras idéias que viajam pelo Atlântico Negro, tão bem discutido em livro homônimo de Paul Gilroy[8], a política de reconhecimento, ultrapassa as fronteiras nacionais e se enquadra no longo esforço produzido na modernidade tardia para desbancar a cultura ocidental do pedestal onde ela mesma se colocou.

Ao longo dos séculos XVI a XIX, o racionalismo científico, primeiro no Renascimento, depois na época da Ilustração, instituiu uma visão de mundo na qual apenas alguns poderiam falar qualquer coisa, sobre qualquer tema, em qualquer lugar, a qualquer um e a qualquer momento, pois possuía seu portador o discurso competente.[9] O mesmo processo que levou a autonomia cultural da Europa, em relação à dependência cultural da Antiguidade Clássica[10], instituiu a noção de progresso na história e concebeu o modo de vida das elites letradas do oitocentos como o ponto de chegada de toda a aventura humana na terra, que necessariamente partia da selvageria e terminava na civilização. Deste modo, como afirma Peter Maclarem, a cultura ocidental avocava para si o poder de se constituir em referencial absoluto para julgar todas as outras culturas.[11]

Em ultima análise, a Lei 10.639/03 e as Diretrizes apontam os limites do humanismo (iluminista, liberal e universalista), avesso ao reconhecimento de qualquer referência para além dos méritos dos indivíduos. Imaginando-se ainda no século XVIII, seus defensores, afirmam que tais demandas de grupos particulares constituem privilégios inaceitáveis na ordem democrática. Pois, os cidadãos deveriam acolher de bom grado que as instituições públicas estivessem dispostas a reconhecê-los como indivíduos universais.

No entanto, como aponta Amy Gutmann, as democracias liberais não podem considerar a cidadania como uma identidade universal geral, porque cada pessoa é única, um individuo criativo e criador de si mesmo. As pessoas, também, são transmissoras de cultura, sendo que as culturas que transmitem diferem de acordo com suas identificações passadas e presentes. Parte desta unicidade das pessoas é fruto do modo em que integram, refletem e modificam sua própria herança e daqueles que entram em contato. Citando Charles Taylor, a identidade humana se cria dialogicamente, em resposta a nossas relações, e inclui nossos diálogos reais com os demais.[12] Do mesmo modo, o falso reconhecimento ou a falta de reconhecimento pode causar dano, pode ser uma forma de opressão que aprisiona alguém em um modo de ser falso deformado e redutor. [13]

O que se propõe é uma educação aberta à diversidade humana, atenta as desigualdades e disposta a construir novos parâmetros de cidadania onde a diferença não seja percebida como alicerce da desigualdade. Acreditamos que tais avanços e sintonia com o debate internacional correm riscos se uma determinada percepção de natureza racialista, essencialista e nacionalista se impuser no processo de implementação da Lei 10.639/03 e das Diretrizes. No meu campo de estudo – a História -, preocupa-me a distância existente entre o que há de melhor na historiografia e os fragmentos de história que compõem a memória presente no discurso de setores do Movimento Negro e que, de algum modo, tem informado as inúmeras iniciativas desenvolvidas por organismos públicos ou que servem aos propósitos públicos.

Incomoda-me sobremaneira a associação entre raça, história e identidade negra. Em meu entendimento, não o devemos ter medo de abandonar bandeiras que faziam sentido nos anos 1970, mas que estão hoje ultrapassadas e tem servido aos nossos inteligentes adversários para destruir nossos sonhos de construção de uma sociedade democrática neste país.

Como diz Kwame Appiah, existem idéias errôneas que herdamos dos ocidentais que precisam ser eliminadas[14]. Que os europeus e seus descendentes nos vejam como uma raça é uma coisa, que nos oprimam em termos raciais é outra. Mas que nós nos percebamos como uma raça é terrível. Mesmo que venhamos a dizer que a nossa noção é diferente – uma construção histórico e social , útil como forma de aglutinação dos afrodescendentes.Na prática tal noção se baseia na naturalização da solidariedade política.

Um segundo aspecto , é o nacionalismo racialista que sustenta e legitima o discurso de setores do Movimento Negro. A idéia de que constituímos entidades unitárias (povo, comunidade, etnia, etc) que precisa resgatar uma "identidade" construída e legitimada na "história" , nos joga no interior das invenções européias com as conseqüências nefastas que nos já conhecemos. Vale lembrar que a racializacao do discurso anti-racista é recente na história de resistência organizada das populações afrodescendentes no país. Pelo menos, na cidade de São Paulo, os movimentos sociais no meio negro, como os denominava o velho Florestan Fernandes, defendiam a integração dos homens de cor a sociedade brasileira, através da assimilação dos valores ocidentais. Para eles, a Abolição da escravatura havia colhido os ex-cativos sem as condições necessárias para a vida em sociedade. Daí a proposta de uma segunda Abolição, que oportunizasse aos filhos da África, trabalho, educação e saúde.[15] Atentem para o detalhe. São homens, cujo único detalhe é terem a pele escura que denuncia suas ascendência cativa. O que desejam, oportunidade e o fim do preconceito de cor, de serem julgados pela cor de sua tez.

E cabe aqui uma pequena digressão. Os primeiros militantes anti-racistas operavam com categorias que, aparentemente inteligíveis para nós, pessoas do Século XXI, vêm de uma matriz cultural distinta, fazem parte das lutas de africanos e afrodescendentes, dos séculos XVIII e XIX, para ocupar um lugar ao sol em uma sociedade de Antigo Regime, colonial e escravista. Para eles, cor não possuía nenhum conteúdo “racial, como nós contemporaneamente imaginamos, mas denotam uma série de distinções sociais, baseadas na desigualdade natural entre as pessoas, que determina a “condição social” de alguém. [16]

No entanto, a visão dos afrodescendentes vistos como portadores de uma identidade negra, que os singulariza em relação aos outros povos e que compõem a sociedade brasileira, é bem mais recente. Trata-se de um discurso construído sob o impacto dos movimentos por direitos civis nos Estados Unidos, principalmente, dos black muslins, de Malcon X e dos Panteras Negras, da luta contra o colonialismo português na África e o Apartheid na África do Sul. Dos movimentos radicais norte-americanos, herdamos o conceito de raça como estruturante da nossa percepção de mundo e na formulação de uma política negra. Neste caso, falamos de um movimento nacionalista que concebe os descendentes de africanos como um povo que não tem reconhecido seu direito a existência, ou melhor, que através de uma pedagogia da violência é constituído ideologicamente com indivíduos dependentes, sem cultura, sem história, sem religião. A política do Movimento Negro dos anos 1970 para cá tem se configurado a partir da retomadas de uma série de práticas culturais, com ênfase na culinária, estética, dança, musica e poesia. Esta ultima influenciada pela negritude de Leopold S. Senghor.. Ou seja, valorização das culturas africanas e afro-brasileiras, das matrizes religiosas africanas, especialmente o candomblé e uma história de resistência à escravidão – em suma, de tudo aquilo que consubstancie uma identidade negra.

Nesta história da resistência, o sistema escravista em si ocupa um lugar especial.Em nossa “memória” herdamos do discurso abolicionista uma visão equivocada da vida sob o cativeiro nos primeiros séculos do país. Nos pensamos a escravidão a partir do Direito Romano (é ele que define o cativo como uma coisa, morta socialmente), porém esquecemos que a legislação que serviu de base para normatizacao das relações escravistas eram as Ordenações Filipinas e muitas das praticas regulavam a vida em cativeiro, pertenciam ao campo do direito consuetudinário.[17]

Alem disso, como aponta Claude Meillassoux, o direito expressa, enuncia um mundo como os senhores gostaria que fossem, centrado numa relação individualizada entre senhor e o escravo. Este visto como semovente, sem vontade, e aquele visto como portador de toda vontade[18]. Desse modo, como comenta Silvia Lara, ao imaginarmos estas relações como marcadas unicamente pela violência, perpetuamos uma visão da história em que os senhores emergem como os únicos sujeitos.Temos dificuldades de perceber que a escravidão não constituía um ser novo, classe ou qualquer coisa que o valha , destituída de suas experiências culturais herdadas ou partilhadas.

Um outro aspecto importante, diz respeito ao que entendemos por historia. Será que nossa versão historiográfica tem que repetir esquemas interpretativos do século XIX, baseada na relação de impérios e heróis?Qual o lugar das pessoas comuns nestas historia? Teu pai, tua mãe, teu vizinho ou massa de africanos e afrodescendentes que viveram em cativeiro e nunca integraram um quilombo? Eles não têm historia?

Outra questão importante é o verdadeiro culto à autoridade. Por maior respeito e consideração que devamos ter com os mais velhos e o muito que temos a apreender com suas experiências, não é possível que as pessoas não dêem oportunidade para fazer florir a diversidade de opiniões que existe em nosso meio.Precisamos debater as idéias, estimular a produção de conhecimento e otimizar as condições que no futuro nos permitam arrancar o controle das mãos dos intelectuais eurodescendentes, autodenominados brancos, o discurso autorizado e legitimado sobre afrodescendentes.

É preciso lembrar, portanto, que existe uma distância entre as demandas da sociedade e dos movimentos sociais que a representa, e a constituição de políticas públicas, principalmente, políticas de promoção de igualdade. No campo educacional, é preciso lembrar que tal política deve levar em conta a diversidade de instituições escolares. Neste caso, não se está falando apenas para os afrodescendentes com “identidade negra”, mas também para “brancos” luteranos do interior de Santa Catarina.

Talvez, este espaço de mediação e tradução cultural e política, seja um lugar adequado para intervenção dos intelectuais acadêmicos, particularmente aqueles aglutinados nos núcleos de estudos afro-brasileiros. As dificuldades cotidianas têm nos impedido de perceber nossas conquistas, e a necessidade premente de atualização da tática e estratégia da luta anti-racista, de modo a aproveitarmos o máximo esta nova conjuntura. Outros atores estão presentes, a base favorável à promoção de igualdade se expandiu e nós temos a responsabilidade de manejar de forma positiva esta nova circunstância. Nesta luta a lugar para todo mundo...

Ilha de Santa Catarina, inverno de 2006.
Notas
[1] Uma primeira versão deste artigo foi publicado sob o título de Reflexões avulsas sobre os significados da Lei 10.639/03 , no Boletim PPCor - Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira, n°21, nov.2005. Laboratório de Políticas Públicas da UERJ.
[2] Professor de História da África e Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina.
[3] Parecer de autoria dos eminentes conselheiros Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Carlos Roberto Jamil Cury, Francisca Novaltino Pinto de Ângelo e Marília Ancona-lopes, aprovado por unanimidade pelo Pleno do Conselho Nacional de Educação em 10.03.2004 e homologado pelo Ministro da Educação em 19.05.2004.
[4] MINISTÉRIO DE ESTADO DA EDCAÇÃO E SECRETARIA ESPECIAL DE POLITICAS DE PROMOÇÃO DE IGUALDADE RACIAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultua afro-brasileira e Africana . Brasília: INEP, 2004. p.12
[5]Idem. p.11
[6]Ibdem.
[7]Ibdem.
[8]GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Rio de Janeiro: Editora 34/ Universidade Candido Mendes, 2001.
[9] HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula:recortes contemporâneos.Belo Horizonte: Selo Negro, 2005. Ver em especial o 1° Capitulo intitulado “O olhar imperial”.
[10] ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro.São Paulo: Perspectiva, s/d
[11]MACLAREM, Peter. O multiculturalismo crítico .São Paulo: Cortez Editora, 1995.
[12]GUTMANN, Amy. Introducción. TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y “Lá política del reconocimiento”. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993. p.18-19
[13]TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y “Lá política del reconocimiento”. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993. p.44
[14] APPIAH, Kwame. Na casa de meu pai:A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro:Contraponto, 1997.
[15] Ver: CARDOSO, Paulino de Jesus F. A luta contra a apathia: Um estudo sobre a instituição histórica do discurso anti-racista na Cidade de São Paulo, 1915-1931. São Paulo, 1993. Dissertação de mestrado, Programa de Estudos Pós-Graduados em História, PUC/SP.
[16] Sugiro a todos a leitura dos seguintes textos : GRINBERG, Keila
[17] Ver: WISSEMBACH, Maria Cristina. Sonhos africanos, vivências ladinas. São Paulo: Ed. Hucitec, 1998. p.28. Ver também: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990; MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico. São Paulo: Edusp, 1994; MATTOS, Hebe Maria de. Das cores do silêncio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
[18] MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da escravidão:O Ventre do ferro e do dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

Comentários