Crime e Castigo: Comentários sobre uma semana de violência no Rio


Por , 09/02/2014 10:26
Assassinatos no Juramento.jpg
Imagens dos corpos após operação policial no Morro do Juramento
Choques de violência em comunidades pacificadas
Na manhã de sexta-feira, dia 31 de janeiro, o mecânico de 33 anos Edilson Rodrigues da Silva Cardoso saiu de sua casa na Rocinha para
fumar um cigarro e foi morto, baleado no peito, ao meio de um tiroteio
entre a polícia e traficantes na favela da Zona Sul controlada pela UPP. Somente cinco dias antes, na segunda-feira, dia 7 de janeiro, também na Rocinha o adolescente de 16 anos Thales Ribeiro de Souza foi morto por um tiro nas costas. Nenhuma das vítimas tinha envolvimento com o tráfico.
Em sua coluna no  Jornal do Brasil,
o líder comunitário Davison Coutinho escreveu: “O que está acontecendo,
o que o governador e seu secretário de segurança têm a dizer para essas
famílias e para essa comunidade aterrorizada? Estou curioso pra ouvir
as desculpas. Será que mais uma vez as vítimas serão julgadas como
criminosas? Afinal, assassinado na favela é bandido e no asfalto é
vitima.” Não houve qualquer explicação ou pronúncia pública sobre essas
mortes.
Fogos após um dia de tiroteio intenso na Rocinha. Foto: Estadão
Fogos após um dia de tiroteio intenso na Rocinha. Foto: Estadão
Conflitos violentos entre a polícia e
traficantes de comunidades reguladas por UPPs continuaram durante o fim
de semana, com tiroteios na Rocinha, no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro.
No domingo, dia 2 de fevereiro, a PM da UPP Alda Castilho, de 22 anos,
foi morta com um tiro na cabeça no Parque Proletário da Vila Cruzeiro.
Outro policial militar e dois moradores foram feridos. A página da
comunidade no Facebook, Vila Cruzeiro-RJ, publicou notícias ao longo do dia de tensão, inclusive compartilhando um vídeo registrado
por um morador mostrando PMs da UPP atirando aleatoriamente, o que não
só ajudou a informar os moradores que queriam voltar às suas casas
seguramente, mas também denunciando a primeira reportagem que não
divulgou que moradores tinham sido feridos. No dia seguinte, a página
publicou, “Chega de violência! Queremos paz e serviços sociais, pois a
Vila Cruzeiro está totalmente abandonada.”
A morte de um policial costuma provocar
uma reação rigorosa das forças de segurança do Rio. Após o confronto de
domingo, o Secretário de Segurança do Estado José Mariano Beltrame
anunciou que haverão operações em doze locais onde atua a facção
responsável pela morte de Castilho. Na manhã de terça-feira, dia 4 de
fevereiro, em uma dessas operações no Morro do Juramento na Zona Norte,
seis pessoas foram mortas e quatro ficaram feridas. Operações policiais
ocorriam simultaneamente na Santa CruzVila Kennedy e na Baixada Fluminense.
Confronto entre polícia e traficantes na Vila Cruzeiro
Confronto entre polícia e traficantes na Vila Cruzeiro
Reações à última operação da PM
Imagens chocantes da operação violenta no Morro do Juramento começaram a circular a Internet instantaneamente. Na página PMERJ FEM do
Facebook, um portal não oficial da polícia militar feminina do Rio,
imagens de corpos e escadas ensanguentadas foram compartilhadas com a
legenda: “A resposta da morte da SD Castilha e SD Rocha [a segunda morta
em uma tentativa de assalto em Marechal Hermes no sábado, dia 1o de
fevereiro], ambos mortos no último fim de semana, está sendo dada!” A
publicação, assim como a posição da PM que aparentou favorecer a
violência vingativa, foram altamente denunciadas nas redes sociais pela
comunidade e por ativistas de direitos humanos. A publicação foi depois
removida.
As imagens circularam com comentários do
tipo “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos são para humanos
direitos”, sugerindo uma atitude que serve para justificar as mortes
por policiais no Rio. Comentando online, o fotógrafo e ativista Raull Santiago postou,
“A polícia declara guerra/vingança em rede nacional, entra nas favelas
assassinando a esmo, faz jorrar valas de sangue pelos becos e vielas…
Enquanto isso, a sociedade acomodada, alienada e hipócrita aplaude com
louvor esse tipo de ação, legitimando o ódio, a morte, o caos”.
A legitimidade e legalidade das ações
policiais de terça-feira estão sendo questionadas. Na quarta-feira, o
perito Leví Inimá de Miranda declarou abertamente que acreditava que a
polícia tenha realizado execuções e sabotado qualquer possibilidade de
inquérito forense ao levar os corpos ao hospital. Falando ao GLOBO,
ele disse: “Posso afirmar que os homens fotografados já estavam mortos
e, portanto, são grandes os indícios de execução. Ou seja, removeram
cadáveres para desfazer o local.”
Moradores de favelas há muito tempo vêm
denunciando a violência da PM nas comunidades, assim como ações ilegais
como essa, e continuam a desabafar. Em um artigo publicado na semana passada no jornal O Cidadão da Maré,
a jornalista comunitária e ativista Gizele Martins escreveu: “Nós não
nos calaremos nunca enquanto houver pobre, negro e favelado sendo
exterminado. O que queremos é ter o direito à cidade. Queremos ter o
direito de existir, de ser, de viver, de se sentir parte e não margem
deste tal sistema que apenas controla e mata favelados todos os dias”.
O adolescente foi preso pelo pescoço por uma trava de bicleta, no Flamengo. Foto: Reprodução/Facebook
O adolescente foi preso pelo pescoço por uma trava de bicleta, no Flamengo. Foto: Reprodução/Facebook
Ataque por grupo de “justiceiros” no Flamengo
Outro incidente violento dessa última
semana aconteceu no bairro do Flamengo na Zona Sul, escandalizando
muitos e gerando discussões raivosas. Na madrugada de sexta-feira, dia
31 de janeiro, um grupo de jovens brancos de classe média torturaram um
rapaz negro suspeito de roubo, prendendo-o nu a um poste com uma trava
de bicicleta no pescoço. A imagem rapidamente se difundiu pelas redes
sociais e o grupo chamado de “justiceiros” foi tanto condenado quanto
apoiado num debate moral altamente controverso.
Muitos moradores de bairros como o
Flamengo, onde crimes e assaltos têm aumentado nesses últimos meses sem
que uma segurança maior tenha sido imposta, têm aplaudido e defendido os
vigilantes que “fizeram justiça com as próprias mãos”, revelando que
existe uma onda fria e obscura de medo e aversão. No Twitter, eis alguns
comentários ao acontecimento: “Não é bárbaro se é auto defesa
preventiva da sociedade contra vagabundo!”; “É assim que tem que fazer
com esses filhos da puta”; “Deveria ter sido morto!”; e “Está com pena
dele? Leva para casa”.
Comentários do gênero não ficaram só nas mídias sociais. Na quarta-feira, a âncora do Jornal da SBT Rachel Sheherazade disse,
“Num país que sofre de uma violência endêmica, a atitude dos
‘vingadores’ é até compreensível… o contra-ataque aos bandidos é o que
chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um
estado de violência sem limite”. A sua diatribe foi muito compartilhada e
criticada, inclusive pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais que divulgou uma nota de repúdio à
“violência simbólica dos recentes comentários” da jornalista que
“violou os direitos humanos, o Estatuto da Criança e do Adolescente e
fez apologia à violência”.
Desenho de Victor T., postado na internet
Desenho de Victor T., postado na internet
Muitos outros, entre eles ativistas de
comunidades e defensores dos direitos humanos, também têm verbalizado
choque e ultraje em relação ao incidente e à repercussão. Muitos
comentários apontaram à uma continuidade ao passado brutal da escravidão
no Brasil, comparando a imagem recente do adolescente preso ao poste a
uma forma de punição escrava violentíssima do século XIX. Uma dessas imagens levou a legenda “O racismo sempre se camufla de justiça para agir”. Num artigo da Carta Capital que
se popularizou pelas redes sociais, o jornalista Matheus Pichonelli
escreveu: “Este país que aplaude o justiçamento é o mesmo que ignora uma
questão histórica: o açoite é causa, não consequência, da tragédia–e
esta não foi abolida com o fim da escravidão”.
As claras dimensões de raça e de classe
dos crimes e tragédias da última semana foram ressaltadas por acadêmicos
conceituados do Rio, que comentaram sobre os eventos. A professora e
pesquisadora de Comunicação e Cultura da UFRJ Ivana Bentes publicou: “A
guerra no Brasil é uma só: contra os pobres! Onda racista e fascista no
Brasil neoescravocrata. É o mesmo teatro do biopoder, poder sobre a vida
e sobre os corpos negros e pobres: bestializar, destituir a humanidade,
animalizar, apresentar como ameaçadores, chacinar, humilhar e
transformar em objeto de ódio. Os ‘justiceiros’ imitam a policia que por
sua vez chacina e massacra usando a cor e o grupo social como critério
de justiçamento”.
Luiz Eduardo Soares, renomado
especialista em segurança pública, publicou uma nota traçando a hipótese
de que a tortura pelo grupo de jovens brancos de classe média e o seu
ato de despir e prender ao poste o adolescente negro é uma reação
inconsciente aos “rolezinhos
que vêm “dramatizando migrações democráticas, eliminando fronteiras
entre o centro e a periferia, deslocando a violenta e iníqua supremacia
de cor e classe”.
Carlos Latuff: Flamengo
Carlos Latuff: Flamengo
Não somente as questões de classe social
e raça são essenciais à análise dos últimos acontecimentos no Rio e de
seus problemas de segurança maiores, mas também a cultura da impunidade
permite que tais incidentes de violência aconteçam. No Rio, a impunidade
parece se estender tanto aos ladrões que assaltam diariamente nos
bairros mais ricos da cidade quanto aos policiais e traficantes que
matam nas favelas. Na ausência escancarada de um sistema judiciário
eficaz, a vingança–como praticada pelos justiceiros e PMs na semana
passada–começa a ser vista como uma substituta cabível.
Ao falar sobre esses eventos recentes na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) na
última terça-feira, o Deputado Estadual e coordenador da Comissão de
Direitos Humanos Marcelo Freixo advertiu contra confundir vingança com
justiça, e convocou um debate extenso sobre o que aconteceu. Freixo
disse: “É neste momento que venho reafirmar a defesa de uma cultura de
direitos para todos. Desde o policial que precisa de mais condição de
trabalho, a qualquer um destes jovens que sobrou de uma sociedade
mercado de trabalho, que nunca teve o direito de ir e vir, de educação.
Não é confundindo justiça com vingança que vamos construir uma
democracia. Estes dois exemplos devem ser debatidos exaustivamente nas
escolas públicas e privadas, no parlamento, nas igrejas, para dizer qual
modelo de sociedade a gente quer”.
Os acontecimentos violentos da semana
passada definitivamente instigaram debates fervorosos na mídia impressa e
virtual, assim como nos bares, escritórios e ruas em todos os cantos da
cidade. Que esses eventos tenham gerado um desconforto social, um maior
e mais profundo escrutínio e contestação pública é um sinal promissor
de que a cultura e as condições que permitem que a violência continue
podem, enfim, levar a mudanças. Assim, o Rio poderá finalmente caminhar
em direção a um futuro mais seguro para todos, como todos tanto desejam.

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