Obrigado ao cuspe!!!!


Professor da Universidade Federal do Piauí narra no FACEBOOK agressão racista sofrida por ele.


Caríssimas(os), boa noite.

Uma hora atrás, cerca de 19:10 horas, retornava à casa, de bicicleta, entrando na Avenida Dom Severino. Logo ao passar pela loja do McDonald´s, um Gol prata, escuro, placa NIF 9022, sai do referido estabelecimento cantando pneus e, ao passar pela bicicleta, passageiros do automóvel cospem em mim. Em um átimo, me ultrapassam, ao que percebo alguns jovens rindo, olhando para trás, comemorando o sucesso de sua empreitada.

Horas antes, havia compartilhado aqui duas notícias que se mostravam sintomáticas de nossa bestialidade coletiva. Algumas semanas, tenho timidamente procurado me posicionar ante a hipótese perniciosa de uma consciência humana que, ao fim e ao cabo, deslegitima a pergunta pela diferença em nome de nossa humanidade comum, pressupondo nossa igualdade jurídica e filosoficamente estabelecida.

Pois, a consciência humana tentou me cuspir esta noite. De fato, a cor dos jovens se torna irrelevante, não há necessidade alguma de salientar que eram jovens brancos. Súbito, me senti em total impotência ao vê-los contornando a rotatória da Dom Severino com a Irapuan Rocha, a fim de retomar a avenida no sentido contrário, sem previsão alguma do que poderiam fazer a partir dali - inclusive, nada, por se tratar de um evento absolutamente casual, tomado contra um transeunte absolutamente aleatório cuja cor, contudo, talvez não seja aleatória.

O sentimento de impotência avassala os sujeitos que a sofrem, sobretudo, por um processo coletivo de deslegitimação e culpabilização. A reação à agressão sofrida se interpreta como paranoia ou síndrome de perseguição, a pergunta emanada do sujeito agredido se interpreta como racismo invertido. O sentimento de impotência surge, insidioso, não só porque cuspir do interior de seu carro talvez não incida em nenhuma infração de trânsito mas porque, sobretudo, tenho hoje sérias dúvidas de que cuspir em um negro constitua algum tipo de infração, seja jurídica, social ou teológica. Não a cusparada simbólica, muitas(os) de nós somos cuspidas(os) todos os dias, mas a cusparada física, protegida pela segurança onipotente do automóvel de meu pai. O sentimento de impotência porque, mesmo vítima de uma agressão, faz-se necessário hesitar, posso ter o azar de que algum dos agressores tenha sobrenome, um sobrenome teresinensemente válido e, por conta disso, eu passe a agressor, com cara e cor de agressor, com um policial adentrando minha residência como se eu fora um agressor, com um advogado e um deus legitimando o status quo de meu agressor.

Enquanto se digere este fait divers teresinense, com vistas a compreendê-lo melhor, talvez valha a pena agradecer aos tripulantes do automóvel pelo ocorrido. Se a defesa expressa da consciência humana me funcionou como a barata no armário de G.H., na noite de 14 de novembro de 2013, permitindo-me nunca mais ser o mesmo, agradeço ao formulador do cuspe que errou o alvo por, igualmente, me fornecer o estímulo a nunca mais me calar. Como me calei covardemente em novembro de 2012, quando minha orientanda Geyza Costa teve seu sobrenome obliterado no caderno de resumos de um evento e, ao pleitear explicações, recebera a deslegitimação de seu pleito, recebendo de brinde uma estigmatização como mulher desequilibrada, desordeira. E me calei. Desafortunadamente, me calei. Como me calei de forma pusilânime quando, em uma segunda-feira à noite no período 2013.1, alunas(os) de Administração da UFPI tomaram violentamente a sala 331, às 19:45 horas (sua aula começava às 20 horas, e ninguém ocupara a referida sala no horário anterior), expulsando a mim e às meninas do projeto de pesquisa, na afirmação silenciosa de que aquela gente preta não deveria ocupar aquele lugar. E me calei. Vergonhosamente, me calei.

Pois, muito obrigado ao autor do cuspe. Graças a esse evento completamente aleatório, nunca mais hei de me calar como sujeito negro. Assim como muito obrigado à ocupação violenta da sala 331 naquela noite de segunda-feira, graças a qual jamais me desculparei, nem física nem simbolicamente, pela ocupação de qualquer lugar - no que resgato o ensinamento fundamental do Prof. Paulino Cardoso segundo o qual "deixe o branco te dizer não", sem necessidade alguma de que se diga não a si mesmo antes de tudo. Sem necessidade alguma de se autoparar na barreira policial, como quem pede desculpas por conduzir o próprio veículo. Do mesmo modo, agradeço, ainda que tardiamente, à obliteração do sobrenome de minhas orientandas naquele evento, elas que trabalham em um projeto de pesquisa versando precisamente sobre o nome enquanto construção identitária nas literaturas afroamericanas, e que para falar disso sofreram o apagamento de seus nomes, graças ao que nunca mais nos percebemos diminutas(os) em nosso ambiente de pesquisa, em nossos fóruns acadêmicos aqui e alhures. Tal como já mencionado nos agradecimentos de minha tese, volto a agradecer a todas(os) que, diuturnamente, ao praticar a violência contra a diferença, legitmadas(os) por seu lugar de consciência humana, de cidadão de bem, estimulam e subsidiam nossas práticas contra a violência em quaisquer níveis. Graças a esse tipo de agressões, a cada dia posso me aproximar um pouco mais daquela canção fabulosa de Dimas Bezerra ao me recusar à condição de "neguinho que rima amor e dor".

Muito obrigado ao cuspe, emitido talvez de um passageiro que estivesse sem cinto de segurança - isso, e apenas isso, seria a infração em jogo, nesse episódio.

Comentários